Vivemos tempos dúbios, dominados pela ditadura dos
especialistas. Ao final de contas, são eles, sempre eles, que, tentando ajudar,
nos passam as mais diferentes ordens em nome do nosso próprio bem-estar, de uma
melhora de desempenho, performance etc. Assim, nosso dia passa a ter muito mais
obrigações que o dia dos nossos avós, por exemplo. Temos que mastigar 30 vezes
a comida, comer alpiste – que agora possui o nome de linhaça – a escova de
dentes, segundo a minha dentista, precisa ser suíça, em outras palavras, até a
nacionalidade da escova de dentes passa a ser importante! A margarina necessita
combater o colesterol, o nosso banho deve ser rápido, afinal de contas, a água
em São Paulo está acabando... e nem saímos do café da manhã.
Para a vida profissional, mais cobranças: cursos e
mais cursos de pós-graduação, MBA, mestrado, doutorado e pós-doutorado, de
preferência, no exterior. Idiomas e mais idiomas, alguns clássicos como o
inglês e o espanhol, alguns da moda como o mandarin. Há ainda a roupa da moda –
e, para a ocasião profissional, o carro da moda, o corte de cabelo da moda, o
celular da moda (que deve ser trocado há cada 6 meses, mesmo que o novo não
pareça tão diferente assim do antigo). Happy hours intermináveis, jantares de
negócio, finais de semana dedicados ao trabalho e a “prospectar” novas
possibilidades profissionais.
Há ainda a vida pessoal. Se for solteiro(a), há
certamente algo errado com você. É preciso sair e se divertir e caçar, mesmo
que você não tenha vontade ou aptidão para isso. Se você já é casado(a), é
cobrado para ter filhos e se já os tem, é preciso arranjar um tempo para dar
atenção ao casamento e as crianças, enfim, a vida em família. Na vida sexual a
performance também é cobrada. Como diz o psiquiatra e psicoterapeuta Flávio Gikovate,
por falta de um padrão melhor ou um padrão anterior, as relações sexuais são
pautadas pelas performances dos filmes pornô: ele ou ela ficam mais preocupados
em impressionar do que curtir o momento.
Além disso, é necessário cuidar do corpo em uma academia,
ter tempo para os pais e amigos, fazer um trabalho voluntário, ter uma
religião, se inteirar sobre as últimas da política...
Em nome do bem-estar, cobranças e mais cobranças.
Não é à toa que a grande doença psíquica do momento é a ansiedade, um “tentar
desesperado” em cumprir toda esta agenda impossível.
A pressão do superego, seja o próprio, seja um
“superego social” passa a ser enorme a fim de cumprir tudo. Como se não
bastasse, a cada dia aparecem novas “obrigações de bem-estar” sugeridas por
especialistas.
Na época das redes sociais, não podemos nem ter um
DIA DE FÚRIA, como aquele famoso filme em que Michael Douglas tem um surto de
raiva.
Nos dias de hoje, não podemos nos dar ao luxo
disto, pois o mínimo “piti” em uma loja ou restaurante será gravado por
celulares e mais celulares e, alguns cliques mais tarde, poderemos ser o
próximo “mico” da internet.
Nem errar não
nos é permitido mais com tranquilidade. O caso recente em que uma torcedora
gremista chama o goleiro Aranha de “macaco” é a prova de que o Big Brother, o
“Grande Irmão” de Orwell finalmente nos controla com força total. Na obra do
escritor, esta tarefa controladora do Grande Irmão é exercida por um Estado
Forte, mas na atualidade percebemos que o controle é feito de todos para todos.
É evidente
que a atitude da torcedora gremista não foi correta, mas, certamente, aumentou
o medo de cada um em ser flagrado em uma atitude humana, mas não benevolente e
ser julgado implacavelmente pelo que o cantor Tom Zé chama de “o tribunal do
feicebuque”.
Neste “novo mal-estar da civilização”,uma cobrança
invisível e ao mesmo tempo presente o dia todo, principalmente na competitiva
classe média paulistana, certo dia uma simples frase do escritor Charles
Bukowski começou a mostrar um caminho alternativo a esta pressão toda do
tirânico Superego. A frase é “o tempo é para ser desperdiçado, o amor fracassa
e a vida é inútil”. Tenho esta frase como plano de fundo nos meus dois
computadores. Numa sociedade em que a performance capitalista, em que a lógica
de mercado se apoderou das “verdades”, dos relacionamentos, da moral e da
ética, como afirma Zygmunt Bauman em suas obras, só a ideia de que o tempo é
algo “para ser jogado fora” parece mágico em aliviar as pressões deste superego
tirânico.
Decidi mergulhar na obra de Charles Bukowski e
entendê-lo um pouco mais:
Nascido na Alemanha em 16 de agosto de 1920,
rapidamente a família se mudou para os Estados Unidos. Toda a obra de Bukowski,
seja poesia ou prosa, foi construída em inglês. A vida do jovem Bukowski foi
carregada de violência familiar, com o típico cenário de pai controlador (e
violento) e mãe omissa. Só para se ter uma ideia, em uma das entrevistas de
Bukowski que podemos encontrar no Youtube, o escritor está em frente a sua casa
de infância e mostra o gramado, gramado este que Bukowski era obrigado pelo pai
a aparar de forma milimétrica, pois, se um fiapo de grama ficasse maior, ele
apanharia do pai severamente de cinta no banheiro. Este martírio fora retratado
no livro MISTO QUENTE. Aliás, jamais será possível separar Hank Chinaski, o
grande personagem das obras do escritor, com a vida do próprio Bukowski. O pai,
como muitos que provavelmente passaram por violência, castiga o filho de forma
cruel tentando ensiná-lo a “ser homem”,a “ser macho”. Toda a violência da
infância, somada com o silêncio da mãe frente aos abusos do pai, faz Bukowski
crescer com um grande “vazio emocional”.Já na adolescência, a vida do escritor
– além de todos os problemas característicos da fase – é marcada pela pobreza
da família em plena Depressão Americana dos Anos 30. Além disso, Bukowski fora
acometido por um tipo severo de acne: uma vez por semana ele pegava um ônibus,
cruzava toda a cidade e ia ao hospital para que uma enfermeira furasse as
bolhas (sempre causando muita dor física). Bukowski sempre foi um
introspectivo, não fazia sucesso algum com as mulheres. Sua primeira relação
sexual foi com uma prostituta “enorme de gorda” (palavras dele) aos 25 anos. Ao
final, Bukowski brigou com ela, pois achava que a prostituta havia roubado a
sua carteira. Ele encontrou a carteira no bar depois.
Toda a violência, o vazio emocional e a
introspecção fizeram com que o agora adulto Bukowski fosse uma pessoa que não
quisesse muito da vida, além de perambular de cidade em cidade dos Estados
Unidos, ter os mais variados empregos. Desde cedo Bukowski começou a beber e se
tornou um alcoólatra, vício que carregou até o final da vida. Buk foi carteiro,
vendedor, morou em lugares sujos e baratos, não tinha planos para a vida, não
queria uma carreira ou algo assim. Do tempo livre passado nas bibliotecas,
Bukowski começou a se interessar por escritores como Dostoievski e Hemigway,
suas grandes influências literárias. Ele também gostava de música clássica como
Bach.
A válvula de escape do psiquismo de Bukowski foi a
escrita – poesia e prosa. Ele escrevia de forma quase que compulsiva diversos
poemas e contos, que enviava as revistas literárias da época para serem
publicados. Ainda carteiro, Buk é descoberto por um dono de uma editora
pequena. Eles se sentaram e conversaram. Bukowski fez contas e mais contas e
pediu um mínimo por mês (mínimo mesmo) para que pudesse parar de trabalhar e se
dedicar aos seus textos. Nasce a partir daí o grande escritor e o romancista
Charles Bukowski.
No final dos anos 60, já passado dos 40 anos
Bukowski se torna uma celebridade literária e passa a desfrutar das benesses de
uma vida de escritor famoso: se muda para um bairro caro, tem casos e mais
casos com jovens garotas. Há quem diga que Charles Bukowski é o poeta
estadunidense mais importante da segunda metade do Século XX. Sua escrita “sem
papas na língua”, sem firulas de estilo, diretamente nua, crua e cortante,
contrastava com o estilo rebuscado de texto que tentavam imprimir na poesia dos
Estados Unidos daquela época. Bukowski, mesmo sem querer, acaba com este estilo
rebuscado.
Jean-Paul Sartre chamava Bukowski de “o maior poeta
da América”. Seus poemas, crônicas e demais textos eram sobre ele mesmo, seu
dia a dia em lugares baratos, sua vida com prostitutas, brigas em bares,
problemas com os chefes... Buk foi considerado o “grande poeta das massas”,
pois falava profunda e diretamente a elas.
A vida de Bukowski gerou o filme Barfly (1989),
estrelado por Mickey Rourke e Faye Dunaway. O escritor morre de leucemia em 9
de março de 1994 em sua rica casa em Los Angeles. Já era um escritor famoso e
venerado pelo mundo.
O que a poesia de Bukowski tem para amenizar um
superego tirânico?
Como vários escritores famosos ao longo da
história, Bukowski vivia à margem da sociedade e se orgulhava por isso. Costumo
dizer que a poesia do velho Buk celebra o fracasso, como, se no final das
contas, a coisa não fosse tão ruim assim. É dele a célebre frase: “todo mundo
pode ser sóbrio, mas, para ser um bêbado, é necessário ter talento”.
Ao amenizar os fracassos da própria vida, mesmo sem
saber, Bukowski anula a força de um superego tirânico e cobrador. Quando se lê
Bukowski, tem-se a sensação de ler algo profundo escrito em um linguajar de
rua, pobre e feio, às vezes, mas carregado de sonoridade, como fazem os
repentistas aqui no Brasil. Buk é aquele “relaxa”, aquele “pega leve” que a
molecada repete em alto e bom som. As poesias de um velho duro e amargo pelos
golpes da vida, mas carregadas com uma imensa sensibilidade que tem “um pássaro
azul no peito” mostram que as emoções se escondem mesmo nos mais brutos e podem
aflorar por vez ou outra.
Mesmo pessimista, Bukowski é por vezes um otimista
em seu desprendimento com a vida, como no seu clássico poema Rolando os Dados
(Roll the Dice), recitado por Bono vox do U2, um dos principais fãs do escritor,
junto com ator e diretor Sean Penn.
Tudo sempre pode esperar, sejam os MBAs ou
academias de ginástica, afinal de contas, a vida não é um jogo de performance,
mas “algo a ser desperdiçado”. Os amores vêm e vão, talvez a alma gêmea do amor
romântico nunca nos alcance porque “o amor fracassa” e não se preocupe em
demasiado, afinal de contas, “ a vida é inútil”, você, eu e todos iremos
morrer, então, para que sucumbir a tanta pressão do superego?


Nenhum comentário :
Postar um comentário