Casais EU-ISSO


“Depende do referencial”, com apenas esta simples frase, Albert Einstein ganhou o Prêmio Nobel de Física no Século XX e se tornou um dos homens mais inteligentes de todo o globo, ao afirmar que a Física não pode ser medida em termos absolutos, depende, sempre, de que pontos partimos para a análise. Assim, alguém acostumado ao frio de menos sei lá quantos graus Célsius das gélidas terra do norte, pode achar a São Paulo destes últimos dois dias um lugar até aprazível para um piquenique, mas, eu, o paulistano da gema, estou a congelar os ossos em um vagão do metrô enquanto torço, em linguagem psicanalítica; deposito a minha fé em eventos não-lógicos na esperança de chegar logo em casa para esconder-me pacatamente embaixo do meu edredon branco predestinado a aguentar o inverno nuclear congelante.
O dia, por assim dizer, fora normal. Estamos em 02 de junho de 2014. Os jornais, em clima político há muito, falam dos preparativos para a Copa do Mundo de Futebol que comecará em 10 dias nestes lados. Entretanto, não é e nem foi isso que ocupou o meu pensamento desde a hora que eu acordei até este momento de congelar os ossos e esperar que o transporte público de uma das maiores cidades do planeta faça a sua parte. Junto com a Copa, exatamente no mesmo dia 12, é comemorado aqui em “terras brasilis” o Dia dos Namorados.  Para quem não sabe, não temos tradição alguma nisso, o que eu quero dizer é que o dia 12 de junho não fora escolhido como Dia dos Namorados por qualquer evento histórico ou coisa do gênero. Consta que um grupo de comerciantes, incomodado com as quedas nas vendas logo após o segundo domingo de maio, Dia das Mães, e com noventa dias pela frente até o Dia dos Pais em agosto precisava de algo para “incrementar” os negócios. O famoso publicitário Alcântara Machado fora contratado para resolver o problema e veio com essa; um Dia dos Namorados em 12 de junho, bem no meio do caminho para que as vendas do comércio tivessem seu plus. Macunaimamente, o nosso Dia de São Valentino passa ao largo do 14 de fevereiro para ser comemorado em junho.
Legítimo ou não, consumista, ou seja lá o que você queira chamar, um fato é praticamente inegável: a data pega para muitos. Vejo nas minhas timelines das redes sociais uma constante reclamação, por vezes explícita e, outrora, como um murmúrio aqui e acolá, quase surdo, que encontra eco em seus pares. Era disso que o meu pensamento se ocupou na maior parte do dia: como há pessoas que se sentem solitárias nesta data! A questão era bem outra, quero dizer, o buraco era mais embaixo. RELACIONAMENTOS, parece que este substantivo abstrato tira o sono de forma concreta de muita gente por aqui: quem não tem, quer um, quem tem, quer sair e há os eternos insatisfetistos com aquilo que têm. Será que não está bem para ninguém!? – pensava enquanto me distraí com o aviso “próxima estação, Ana Rosa, desembarque pelo lado esquerdo do trem”. Opa, é a minha, finalmente chego em casa.
Vamos aos poucos.  Primeiro daqueles que não têm, afinal de contas, parece que é o que mais incomoda nestes dias que precedem ao 12 de junho. Penso em começar as investigações por quem me é próximo. Logo, lembro da jovem mulher estilosa que sofre por 2 anos em uma paixão que sabe que não tem o menor futuro. Há a outra, a bela e inteligente, que se tornou sábia demais para desejar um “príncipe em um cavalo branco”, quer apenas alguém parecido consigo, belo, ainda jovem, inteligente e com certos valores ideológicos que se assemelhem. Não é pedir muito, certo? Não, mas, ao que tudo indica neste momento, ela também passará o 12 de junho só. Há a bela e sedutora, aquela que afasta pelo rigor de suas convicções políticas, mas aproxima ao presentear-nos com meros flashes das suas generosas curvas. Ao que parece, também está só. “Se esta mulher belíssima não consegue se encontrar nos relacionamentos, imagina eu, o gordinho” – penso e esboço um sorriso no meio da rua. Por fim, lembrei-me agora da bela mulher do centro do país, pouco sei sobre ela, mas, ao certo, é carinhosa com os seus e também,ao que tudo indica, tem lá seus problemas de relacionamento.
A paixão, dizem, é uma forma de psicose branda, traduzindo: o apaixonado é um cego, todos sabemos. Chegou agora a vez daqueles que têm relacionamento, mas, como diria Shakespeare, “há algo de podre no reino da Dinamarca”. Uma das maiores mentiras de todos os tempos é o “cogito ergo sum” ou penso, logo existo. Balela. O apaixonado não pensa. Va lá, “o Amor conhece razões que a própria Razão desconhece”, só para continuar em Shakespeare, mas um pouco, só um pouquinho de lógica aristotélica básica não faria mal a ninguém. Graças a isso, vejo se formar casais estranhos, gente que, em uma análise psicológica “de boteco”, percebe-se que não terá o menor logro juntos. Por que se formam? Não quero citar nem êxpor ninguém por aqui, mas dia desses, numa balada, conheci um grupo de pessoas. Eu bem que tento, mas tenho dois sensores que nunca desligam: o jornalístico e o psicanalítico. Lá pelas tantas, uma bela mulher disse que queria ir embora e foi nítido (para este marinheiro aqui de primeira viagem, recém-chegado ao grupo) que o rapaz que ela desejava não deu a mínima para voltar com ela. Entretanto, o outro, que fez de tudo para ir, foi imediatamente recusado. É aqui que eu quero inserir, quase que cirurgicamente, aquele mínimo de lógica aristotélica que falei: por que ela não foi como o bom, com o que, a olhos vistos, gostava dela? Por que ao menos não tentou? Imaginem? Ela foi sozinha pra casa e deve ter ido remoendo o descaso ou “o toco”, com diz a molecada. Todos já vimos romances em que falta este mínimo de lógica aristotélica, em que pensamos: “isso não vai dar certo”, mas o apaixonado ignora a tudo e a todos.
Vivemos sob a sombra do Amor Romântico, traduzido em parcas palavras: é você quem escolhe. Nem sempre foi assim, aliás, o amor romântico é deixado de lado ainda em muitos lugares. Lembro-me ainda no curso de Psicanálise da história de uma mulher muito pobre dos rincões do Brasil, que se casou com agricultor apenas para poder comer arroz todos os dias. Se pensarmos com a lógica paulista, era para ser uma história pra lá de triste, mas, como disse no começo do texto,  Einstein ganhou o prêmio Nobel dizendo que tudo sempre “depende” de quem olha o fato. A mulher não só foi feliz, como teve vários filhos. Aqui as coisas funcionaram de uma forma utilitarista. Desta história eu sei pouco, mas meus avós maternos, imigrantes romenos, tiveram um casamento arranjado quando eles ainda tinham 16 anos e acabaram de chegar neste país maluco chamado Brasil. Tiveram problemas? Tiveram, mas viveram juntos até o final da vida. Eu não quero com estes dois casos afirmar que o melhor para os relacionamentos seria radicalizar o patriarcado, entre outras medidas, nada mais mentiroso e imbecil. Porém, ao certo, com toda liberdade de escolha que temos hoje, parece que mesmo assim os relacionamentos não deslancham como era antes. Por quê?
Procurei uma resposta, pelo menos um norte, por menor que fosse, durante todo o meu dia. Certo, vamos para o viés psicanalítico, o inconsciente nos sabota o tempo todo, mas será que ninguém rompe isso? Deixei a mente solta enquanto trabalhava e fazia as minhas atividades, procurava algo na Literatura ou Filosofia, até que eu lembrei-me de Martim Buber.
Judeu-austríaco, o filósofo Martim Buber nasceu em inícios de 1878 e viveu até os 87 anos. Para este filósofo, as coisas só prescindiam de comunicação para existir, de interação entre elas. Reza a lenda que, quando Buber tinha uns 7 anos mais ou menos, os pais resolveram se divorciar. Se era considerado feio para a minha avó, vivida no século XX, se separar, imagina para uma família em pleno século XIX. Entretanto, ao invés um trauma de infância, Buber havia pensado assim: “Por que meus pais, pessoas tão íntegras, não conseguem viver juntos?” Daí nasceu dois conceitos importantes deste filósofo, duas palavras-conceito: EU-ISSO e EU-TU.
Como eu disse, Buber olhava as coisas a partir da sua interação, da comunicação entre elas. Por isso, EU-ISSO é uma relação entre o ser e a coisa, o objeto, é uma relação de benesses, de utilitarismo, de toma-lá-dá-cá. Já o EU-TU trabalha com a relação de alteridade, o que o dicionário define como “um substantivo feminino que expressa a qualidade ou estado do que é outro ou do que é diferente”. A relação EU-TU implica em desdobramento das relações, de uma interação de RECONHECIMENTO do outro, das diferenças. Algum ingênuo, quase em um nível trotskista, como alguém do PSTU, por exemplo (aposto que um aparecerá por aqui só para me assombrar por causa desta piada), pode afirmar neste breve apanhado da obra de Buber que todos os problemas estão na “coisificação” dos sujeitos, devemos então nos empenhar única e exclusivamente em uma relação EU-TU galgada no reconhecimento do outro. Buber nunca corroborou com tal utopia; a relação EU-TU deve ser buscada, mas ela é rara e preenchida por momentos de EU-ISSO.
Ao longo da vida, é importante – e positivo – que os casais equalizem as suas forças em prol de algo maior que é a família. Quem nunca ouviu o marido falar para mulher ou vice-versa: “vai lá falar, você que tem mais jeito”. Usamos as forças do outro, aquilo que ele tem de melhor do mesmo modo que emprestamos as nossas. Assim, pelo menos a meu ver, devem ser construídas as relações. O problema, percebo, são relacionamentos inteiramente balizados no utilitarismo do EU-ISSO. São casais e mais casais de EU-ISSO, o mais da mesma e morna mediocridade. Explico melhor: não sejamos hipócritas nem utópicos, é evidente na nossa sociedade – e em tantas outras – a importância da beleza, por exemplo, ela conta e abre portas, sabemos. Também não devemos desprezar as qualidades financeiras do parceiro, ninguém aqui está fazendo voto de pobreza e vivemos no Capitalismo, não estamos acima dele, traduzindo: precisamos pagar as nossas contas que teimam em chegar, ainda não se recusaram a isso, como afirma o famoso poema de Drummond sobre os Namorados Do Brasil.
Há limites e não devemos ultrapassá-los. Os gregos antigos tinham a expressão “hybris” para explicar a desmesura das coisas. Por exemplo, um gordo está na desmesura do comer, um viciado em compras e cigarro, idem. Os momentos de EU-TU são raros, mas devem ser buscados. A desmesura no EU-ISSO pode, pelo menos neste texto, dar um norte para a confusão dos relacionamentos. O que eu tenho visto por aí, apenas para ficar no meu campo de observação, são pessoas que exageram na busca do utilitarismo dos relacionamentos (ou não se relacionam por não encontrar esta relação de coisas que afirma Buber). É comum ouvirmos: “só namoro com uma pessoa com a mesma carreira que eu, que more perto, que seja blá, blá, blá e blá...”  (sempre características utilitárias). Mesmo que busque o outro para reduzir a própria carência ou a solidão tem nisso um motivo EU-ISSO. As pessoas buscam outras da mesma forma que escolhem compras no supermercado, o problema é que o meu danoninho não tem vontade própria e não me questiona. Aos poucos, os casais do EU-ISSO se adaptam a uma rotina, mas percebe-se anos luz de distância que o amor se foi ou sequer existiu ali. No primeiro momento em que o contrato utilitário é desfeito, BANG! – parte-se para outra. Os casais como os meus avós ou a comedora de arroz, por exemplo, não partiam do amplo leque de escolhas do amor romântico, mas sabiam enxergar o outro e a lidar com este, sabiam a desdobrar e estreitar as interações no melhor estilo EU-TU.
Por que chegamos nisto? Ficamos maus? Corrompidos pelo mercado simplesmente? Não, NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!!!!! Erramos tentando acertar, lidamos com algo complexo com teorias que sequer arranham o problema.
Tenho descoberto – aos poucos – o interessante trabalho do filósofo indiano Jiddu Krishnamurti, que viveu 91 anos e foi contemporâneo de Buber. Há muitos vídeos de Krishnamurti aqui na internet, alguns legendados. O filósofo tem um livro chamado SOBRE RELACIONAMENTOS, mas não é deles que falarei por aqui. Em um vídeo, o filósofo trata de um dos grandes problemas nossos é a SACRALIZAÇÃO DAS IDEIAS. “Nenhuma idéia deve ser considerada sagrada, pois nenhuma abarca a magnitude da vida”, afirma categoricamente Krishnamurti. Nada é sagrado para o filósofo. Cristianismo, socialismo, capitalismo, seja lá o que for, não passa de uma ideia, todo o complexo sistema de existir humano está muito além de uma simples ideia, tentar fazer caber tudo em um conceito é torná-lo raso, de som fraudulento e forçado. A Psicanálise, por exemplo, é uma teoria, em outras palavras, uma ideia. A Psicanálise tem seu campo de estudo, mas nem tudo que existe pode ser explicado por ela sem que soe estranho. Parece óbvio, mas todos nós já vimos alguém tentando “fazer caber” algum fato excêntrico a uma teoria religiosa e a coisa ficou esdrúxula.
Nos meus devaneios, penso que a PAIXÃO, aquela mesma arrebatadora, a que o escritor Charles Bukowski define como "minhas tripas se retorceram. Me senti doente, inútil, triste. Estava apaixonado" vive no campo das ideias. O próprio Bukowski dá uma pista sobre isso ao afirmar  “e você me inventou e eu inventei você e é por isso que nós não damos mais certo”. A paixão é idealizadora, amamos, ou melhor, ficamos apaixonados por aquilo que nos agrada e é idealizado, mas este tipo de amor “é como uma névoa que se desfaz ao primeiro raio de sol de realidade”, só para continuar em Bukowski. A PAIXÃO (que idealiza) é ligada à admiração que temos por alguém, por exemplo. Isto, aplicando Buber, é EU-ISSO. Nos apaixonamos por alguém pelo seu caráter utilitário, por aquilo que esta pessoa nos proporciona: a admiração. Até aí sem problemas, o próprio Buber afirma que o EU-TU é algo raro de acontecer em um casal e que os dias são preenchidos pelo EU-ISSO.
Conheço pouco, mais precisamente, dois casais em que eu acredito que exista o AMOR EU-TU de fato. Em um deles, há uma diferença brutal de idade entre os cônjuges e no outro, a comunista de carteirinha se casou com o reacionário. Devem ter lá suas brigas por isso? Devem, claro, mas existe algo diferente, aquela mágica, aquele “tocar de sinos invisíveis” que todos nós queremos – e esperamos – encontrar dia destes. Ao meu ver, estão mais no EU-TU, em outras palavras, se aceitam – e se amam – como são. Este deve ser o caminho, imagino. Voltando novamente aos meus avós e seu casamento arranjado. Existia o preconceito do divórcio? Existia, mas o que fez com que o casamento desse certo foi o enxergar – e aceitar – o outro como ele é, respeitando às vezes, brigando em outras, tentando transformá-la em algumas. É isso que falta no utilitarismo do EU-ISSO, quando os benefícios acabam, acaba a relação. O AMOR está em enxergar o outro como ele é, idealizá-lo, admirá-lo. Procurar alguém que “se encaixe” nas qualidades que você acha como necessárias para algo duradouro não está dando certo, é só olhar em volta. Ver o outro como ele é de fato – e ainda sim gostar dele – é muito mais que uma ideia, é acompanhar o ritmo da vida que não pode ser racionalizado proposto por Krishnahmurti.

Não se trata aqui do BEM X MAL, que eu prego um modo de se relacionar perfeito e que, quem não me ouvir, irá queimar “nas profundas”, quero com este texto apenas mostrar o “modus operandi” das duas formas de se relacionar, a EU-ISSO e a EU-TU. A escolha, caras amigas (duvido que um homem irá ler este texto, ou irá ler até aqui), é só de vocês. Só posso torcer por vocês neste Dia dos Namorados que se avizinha.

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