A “umenoventaenovização” das coisas




Conheço, além do português, a palavra “amor” em outros dois idiomas: “love” e, agora, em russo, “любовь”. Não banalizo nenhuma delas. Assim faço com a palavra “estupro” desde que me tornei psicanalista, quero dizer, desde que percebi suas implicações na destruição da autoestima das vítimas. Portanto, estupro para mim só acontece na violência do sexual, nada de banalizar (igualitarizar) com expressões como “estupro a História ou a inteligência”.

Banalizar é tornar algo comum, ordinário em sua repetição e portanto, com diluição do seu poder de identidade e força platônica. Amor é algo assim, uso esta palavra em caso único – no de amor mesmo – se eu, por exemplo, gosto, eu gosto, jamais amo. Porque, ao meu ver, a palavra carrega um valor (catéxico, segundo Freud) tão grande que se torna preciosa, sacra. Usá-la “a torto e a direito” só serve para diluir aquela sacralidade, aquela preciosidade em situações corriqueiras do cotidiano e isso destituirá a palavra da importância que ela carrega para mim. Portanto, amo pouco, mas tento amar profunda e sinceramente, com a dedicação merecida.

Toda esta conversa fez-me lembrar do pensador Christopher Lasch, este, estadunidense, jamais americano, porque América contempla um continente, não deve esta palavra estar circunscrita a um único país. Eis um caso em que o compartilhamento é bom. Mas voltando a Lasch, em seu livro “O mínimo eu, sobrevivência psíquica em tempos difíceis”, escrito no início dos anos 80, o professor trata neste tema da banalização das palavras, uma escolhida em questão; “Holocausto”. Já perceberam que a morte sistemática de um povo chama-se genocídio, mas então, por que que com os judeus na Segunda Guerra se chamou “holocausto”? Segundo Lasch, esta palavra surgiu quase uns 15 anos depois que o último campo de concentração foi fechado. Hitler e os primeiros historiadores se referiam a morte dos judeus como “solução final”. Ainda é possível, para os amantes dos sebos, encontrar livros de História com aquela expressão. A palavra “holocausto” foi usada para referir a uma situação específica na História e para que esta jamais fosse banalizada, o que, para Lasch não teve logro. É comum nos referirmos a determinado ambiente como “um campo de concentração”, seja no emprego, escola ou casamento.

Partindo para as áreas “psi”, podemos explicar um pouco do banal por Freud e Lacan. Ainda na primeira tópica, Freud diz que prazer é algo que não existe. Explico: para o pai da psicanálise, o que existe é descarga de desprazer, tornando mais claro, o melhor gole de cerveja é aquele que acontece num verão carioca de 40 graus depois que você ficou por horas desprovido de poder beber. Assim, o gole de cerveja não é um prazer em si, ele retira a sensação aguda (por causa do calor) e duradoura (por causa do tempo) em que você ficou no desprazer da sede. Para Lacan há o “objeto a”, um desejo que se forma antes ainda da constituição da linguagem, por isso não podemos nomeá-lo ou sequer revivê-lo. Lembra-se daquele gosto da comida da avó? Principalmente se você for como eu e sua avó partiu há mais de uma década. Aquilo, segundo Lacan, foi sensacional porque foi a primeira vez que você experimentou e ficou gravado na memória (afetiva) como uma experiência fabulosa! Repetir taz feito nunca resgatará o valor da primeira vez do acontecido.

Agora vivemos em uma época em que a lógica do capital perpassa tudo. Aquilo que Focault nomeu como uma estrutura de poder que atua a atravessar as coisas. O escritor Slavoj Žižek tem uma metáfora interessante. Para ele, “capitalismo é algo como a coca-cola”, algo que pretensamente existe para acabar com a sua sede, mas que de fato só irá melar a sua boca de açúcar para que você tenha mais sede e, logo, compre outra coca-cola. Assim funcionam as coisas. A coca-cola, como tudo nestes tempos, utiliza-se dum cálculo utilitário descrito pela personagem Raskólnikov no clássico “Crime e castigo” de Dostoiévski. A obra é do século XIX, mais precisamente, completa 150 primaveras no ano que vem. A lógica de Raskólnikov, estudante de Direito que abandonou a faculdade por falta de dinheiro, é simples: matar uma velha desnecessária feito um piolho para, segundo ele, ficar com o dinheiro dela e usar de modo que isto potencialize a sua carreira que (na visão soberba de Raskólnikov) será magnânima.


A banalização dos nossos tempos leva a lógica de qualquer lojinha de 1,99 que conhecemos. Ali há uma quantidade absurda de produtos, ou, depende de quem olha, de quinquilharias. A maioria das coisas ali vem da China, país que entendeu o espírito do nosso tempo: coisas produzidas para serem baratas, com materiais igualmente baratos, para que, como a coca-cola, você compre outro quando quebrar. Quem já tentou consertar um produto 1,99 já percebeu ser esta uma missão quase impossível e kafkiana. E esta lógica “a la Focault” atravessa toda a nossa existência atual em uma miríade de possibilidades. Os nossos relacionamentos, por exemplo, são rápidos como uma “refeição” do Mac Donalds e baratos como algo de 1,99. Amor requer tempo, requer mutualidade, aquilo que o meu xará no filme Moulain Rouge explica como “a coisa mais importante que você pode aprender é amar e, em troca, ser amado em retribuição”, aquilo que Lacan define como “estar inserido no desejo do outro”. Como isso acontece em relacionamentos-miojo? Pois é, não acontece. O que temos é a banalização do sexo, em que a repetição corriqueira o torna algo cada vez mais insatisfatório, justamente porque perdeu a aura de sacralidade.



“Aura de sacralidade”... como não se lembrar do clássico texto de Valter Benjamin? Este texto, estudado por mim várias vezes desde a graduação, sempre operou como um “borrão de Rorschach”. Primeiramente eu via Benjamin como um iluminista incomodado com a mudança dos tempos. Já no mestrado estudamos a fundo este texto para crer que Benjamin até via questões positivas na reprodutividade tecnicista que poderiam ser usadas em prol do conhecimento, como era o caso do cinema. Agora, pensando nestas questões de banalização, a reprodutividade técnica, em suma, a cópia da cópia da cópia da obra de arte só faz diluir o seu poder transformador. Esmiúço: suponho que eu queira ver a Monalisa e ser impactado, talvez transformado por esta obra que está no Louvre, em Paris. Eu me preparo para este encontro, primeiramente, porque sou um brasileiro e preciso me dirigir até Paris, do outro lado do Atlântico. Isto demanda tempo, preparação, acuidade. Será uma experiência única, quase como o “objeto a” de Lacan, pois a Monalisa não é algo que eu possa ver todos os dias ao vivo (os empregados do Louvre podem, eu não). Esta expectativa da preparação valoriza a experiência, também toca no “descarrego de desprazer” proposto por Freud e, portanto, será algo de importância sacralizada. Agora, ao olhar para as milhares impressões da obra, para o seu simulacro em “zeros e uns” do mundo virtual, isto torna-se corriqueiro, algo sem valor, banal em sua repetição. Só um outro exemplo bobo, agora usando a coca-cola. Quando eu era criança, coca-cola e todos os outros refrigerantes eram coisas de situação especial, como aniversários, Natal e Ano Novo. Por isso, sentir aquele gosto num clima de festa era uma oportunidade única, escavada em sua própria condição de rara. Na atualidade, confesso que nunca parei para pensar até agora, mas é bem provável que eu tome coca-cola toda a semana, o que faz com que o paladar, agora acostumado pela repetição corriqueira, não sinta o mesmo gosto de outrora. Assim é com a coca-cola, assim são com os nossos pratos preferidos, com as viagens, assim são os relacionamentos ditos líquidos, assim se transforma o amor.

Repetimos porque desejamos reviver experiências elevadas de prazer e consciência, mas não percebemos que esta repetição pode, muitas vezes, levar a perda do sentir. Repetimos mais e sentimos menos, porque a banalidade automatizada e repetitiva liquida a possibilidade de satisfação do prazer. A satisfação mais profunda reside no sacro, na ausência, onde “menos é mais”. Tudo isso fez-me pensar também no clássico Noite Vazia, filme de Walter Hugo Khouri. Na película, a personagem de Gabriele Tinti é um rico empresário que, por buscar o prazer na repetição, parece que só atinge o resultado oposto e não sente mais nada em sua vida. Há uma cena em que uma chuva forte começa e a personagem rapidamente corre para baixo dela, tentando, ao se molhar de uma água que cai de forma torrencial e gelada, sentir algo no seu existir.



Todo este texto parece imbricar para uma lógica moral-conservadora-religiosa, mas não é esta a minha pretensão. Acredito no amor livre, no poliamor, no “seu corpo, suas regras” na melhoria das condições de vida das massas na era industrial. Acredito também que aquele que critica os pobres brasileiros por terem comprado uma geladeira e carro nestes anos de governo social democrata só o fazem porque sempre tiveram estes bens, nunca careceram destes de forma mais profunda para compreender o que significa a ausência de um refrigerador em uma casa de família por um longo tempo, por exemplo. Contudo, não quero mentir. Temos o direito de fazermos sexo de forma livre e descompromissada? Claro que temos! Quem age assim não presta? Claro que isso não procede! Mas entenda: chega um momento em que você não quer mais simplesmente estar, mas ser alguma coisa por aqui, alguma coisa para o mundo, para o seu trabalho, para alguém. E não atingimos isso com a repetição diluidora da banalidade. Nestes nossos tempos, muitas opções são, por vezes, sinônimos de nenhuma. Posso ver milhares de vezes por dia a imagem da Monalisa e é justamente por esta facilidade que eu sempre protelo esta análise, diferentemente se eu fosse ver a original lá na França. Posso ter vários relacionamentos líquidos, opções ao estilo 1,99 nas redes sociais aos borbotões, mas ainda sim não tenho nenhuma, porque estas são todas rápidas, superficiais e repetitivas. Por isso não banalizo a palavra amor, esta é para tudo aquilo que merece, que tem aura. Quero aura nas coisas preciosas da minha vida, como nos relacionamentos, nas minhas opções de esquerda, trabalho e estudos. Achar algo de precioso no universo líquido, imediato e consumista é como tentar achar um presente legal numa loja de 1,99.

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