CHARLES BUKOWSKI E O PROBLEMA DOS NOSSOS TEMPOS



Vivemos tempos dúbios, dominados pela ditadura dos especialistas. Ao final de contas, são eles, sempre eles, que, tentando ajudar, nos passam as mais diferentes ordens em nome do nosso próprio bem-estar, de uma melhora de desempenho, performance etc. Assim, nosso dia passa a ter muito mais obrigações que o dia dos nossos avós, por exemplo. Temos que mastigar 30 vezes a comida, comer alpiste – que agora possui o nome de linhaça – a escova de dentes, segundo a minha dentista, precisa ser suíça, em outras palavras, até a nacionalidade da escova de dentes passa a ser importante! A margarina necessita combater o colesterol, o nosso banho deve ser rápido, afinal de contas, a água em São Paulo está acabando... e nem saímos do café da manhã.

Para a vida profissional, mais cobranças: cursos e mais cursos de pós-graduação, MBA, mestrado, doutorado e pós-doutorado, de preferência, no exterior. Idiomas e mais idiomas, alguns clássicos como o inglês e o espanhol, alguns da moda como o mandarin. Há ainda a roupa da moda – e, para a ocasião profissional, o carro da moda, o corte de cabelo da moda, o celular da moda (que deve ser trocado há cada 6 meses, mesmo que o novo não pareça tão diferente assim do antigo). Happy hours intermináveis, jantares de negócio, finais de semana dedicados ao trabalho e a “prospectar” novas possibilidades profissionais.

Há ainda a vida pessoal. Se for solteiro(a), há certamente algo errado com você. É preciso sair e se divertir e caçar, mesmo que você não tenha vontade ou aptidão para isso. Se você já é casado(a), é cobrado para ter filhos e se já os tem, é preciso arranjar um tempo para dar atenção ao casamento e as crianças, enfim, a vida em família. Na vida sexual a performance também é cobrada. Como diz o psiquiatra e psicoterapeuta Flávio Gikovate, por falta de um padrão melhor ou um padrão anterior, as relações sexuais são pautadas pelas performances dos filmes pornô: ele ou ela ficam mais preocupados em impressionar do que curtir o momento.

Além disso, é necessário cuidar do corpo em uma academia, ter tempo para os pais e amigos, fazer um trabalho voluntário, ter uma religião, se inteirar sobre as últimas da política...

Em nome do bem-estar, cobranças e mais cobranças. Não é à toa que a grande doença psíquica do momento é a ansiedade, um “tentar desesperado” em cumprir toda esta agenda impossível.

 
A pressão do superego, seja o próprio, seja um “superego social” passa a ser enorme a fim de cumprir tudo. Como se não bastasse, a cada dia aparecem novas “obrigações de bem-estar” sugeridas por especialistas.
Na época das redes sociais, não podemos nem ter um DIA DE FÚRIA, como aquele famoso filme em que Michael Douglas tem um surto de raiva.


Nos dias de hoje, não podemos nos dar ao luxo disto, pois o mínimo “piti” em uma loja ou restaurante será gravado por celulares e mais celulares e, alguns cliques mais tarde, poderemos ser o próximo “mico” da internet.



 Nem errar não nos é permitido mais com tranquilidade. O caso recente em que uma torcedora gremista chama o goleiro Aranha de “macaco” é a prova de que o Big Brother, o “Grande Irmão” de Orwell finalmente nos controla com força total. Na obra do escritor, esta tarefa controladora do Grande Irmão é exercida por um Estado Forte, mas na atualidade percebemos que o controle é feito de todos para todos.



 É evidente que a atitude da torcedora gremista não foi correta, mas, certamente, aumentou o medo de cada um em ser flagrado em uma atitude humana, mas não benevolente e ser julgado implacavelmente pelo que o cantor Tom Zé chama de “o tribunal do feicebuque”.


Neste “novo mal-estar da civilização”,uma cobrança invisível e ao mesmo tempo presente o dia todo, principalmente na competitiva classe média paulistana, certo dia uma simples frase do escritor Charles Bukowski começou a mostrar um caminho alternativo a esta pressão toda do tirânico Superego. A frase é “o tempo é para ser desperdiçado, o amor fracassa e a vida é inútil”. Tenho esta frase como plano de fundo nos meus dois computadores. Numa sociedade em que a performance capitalista, em que a lógica de mercado se apoderou das “verdades”, dos relacionamentos, da moral e da ética, como afirma Zygmunt Bauman em suas obras, só a ideia de que o tempo é algo “para ser jogado fora” parece mágico em aliviar as pressões deste superego tirânico.



 
Decidi mergulhar na obra de Charles Bukowski e entendê-lo um pouco mais:
Nascido na Alemanha em 16 de agosto de 1920, rapidamente a família se mudou para os Estados Unidos. Toda a obra de Bukowski, seja poesia ou prosa, foi construída em inglês. A vida do jovem Bukowski foi carregada de violência familiar, com o típico cenário de pai controlador (e violento) e mãe omissa. Só para se ter uma ideia, em uma das entrevistas de Bukowski que podemos encontrar no Youtube, o escritor está em frente a sua casa de infância e mostra o gramado, gramado este que Bukowski era obrigado pelo pai a aparar de forma milimétrica, pois, se um fiapo de grama ficasse maior, ele apanharia do pai severamente de cinta no banheiro. Este martírio fora retratado no livro MISTO QUENTE. Aliás, jamais será possível separar Hank Chinaski, o grande personagem das obras do escritor, com a vida do próprio Bukowski. O pai, como muitos que provavelmente passaram por violência, castiga o filho de forma cruel tentando ensiná-lo a “ser homem”,a “ser macho”. Toda a violência da infância, somada com o silêncio da mãe frente aos abusos do pai, faz Bukowski crescer com um grande “vazio emocional”.Já na adolescência, a vida do escritor – além de todos os problemas característicos da fase – é marcada pela pobreza da família em plena Depressão Americana dos Anos 30. Além disso, Bukowski fora acometido por um tipo severo de acne: uma vez por semana ele pegava um ônibus, cruzava toda a cidade e ia ao hospital para que uma enfermeira furasse as bolhas (sempre causando muita dor física). Bukowski sempre foi um introspectivo, não fazia sucesso algum com as mulheres. Sua primeira relação sexual foi com uma prostituta “enorme de gorda” (palavras dele) aos 25 anos. Ao final, Bukowski brigou com ela, pois achava que a prostituta havia roubado a sua carteira. Ele encontrou a carteira no bar depois.
 
Toda a violência, o vazio emocional e a introspecção fizeram com que o agora adulto Bukowski fosse uma pessoa que não quisesse muito da vida, além de perambular de cidade em cidade dos Estados Unidos, ter os mais variados empregos. Desde cedo Bukowski começou a beber e se tornou um alcoólatra, vício que carregou até o final da vida. Buk foi carteiro, vendedor, morou em lugares sujos e baratos, não tinha planos para a vida, não queria uma carreira ou algo assim. Do tempo livre passado nas bibliotecas, Bukowski começou a se interessar por escritores como Dostoievski e Hemigway, suas grandes influências literárias. Ele também gostava de música clássica como Bach.
 
A válvula de escape do psiquismo de Bukowski foi a escrita – poesia e prosa. Ele escrevia de forma quase que compulsiva diversos poemas e contos, que enviava as revistas literárias da época para serem publicados. Ainda carteiro, Buk é descoberto por um dono de uma editora pequena. Eles se sentaram e conversaram. Bukowski fez contas e mais contas e pediu um mínimo por mês (mínimo mesmo) para que pudesse parar de trabalhar e se dedicar aos seus textos. Nasce a partir daí o grande escritor e o romancista Charles Bukowski.
No final dos anos 60, já passado dos 40 anos Bukowski se torna uma celebridade literária e passa a desfrutar das benesses de uma vida de escritor famoso: se muda para um bairro caro, tem casos e mais casos com jovens garotas. Há quem diga que Charles Bukowski é o poeta estadunidense mais importante da segunda metade do Século XX. Sua escrita “sem papas na língua”, sem firulas de estilo, diretamente nua, crua e cortante, contrastava com o estilo rebuscado de texto que tentavam imprimir na poesia dos Estados Unidos daquela época. Bukowski, mesmo sem querer, acaba com este estilo rebuscado.
Jean-Paul Sartre chamava Bukowski de “o maior poeta da América”. Seus poemas, crônicas e demais textos eram sobre ele mesmo, seu dia a dia em lugares baratos, sua vida com prostitutas, brigas em bares, problemas com os chefes... Buk foi considerado o “grande poeta das massas”, pois falava profunda e diretamente a elas.
A vida de Bukowski gerou o filme Barfly (1989), estrelado por Mickey Rourke e Faye Dunaway. O escritor morre de leucemia em 9 de março de 1994 em sua rica casa em Los Angeles. Já era um escritor famoso e venerado pelo mundo.
 
O que a poesia de Bukowski tem para amenizar um superego tirânico?
Como vários escritores famosos ao longo da história, Bukowski vivia à margem da sociedade e se orgulhava por isso. Costumo dizer que a poesia do velho Buk celebra o fracasso, como, se no final das contas, a coisa não fosse tão ruim assim. É dele a célebre frase: “todo mundo pode ser sóbrio, mas, para ser um bêbado, é necessário ter talento”.
Ao amenizar os fracassos da própria vida, mesmo sem saber, Bukowski anula a força de um superego tirânico e cobrador. Quando se lê Bukowski, tem-se a sensação de ler algo profundo escrito em um linguajar de rua, pobre e feio, às vezes, mas carregado de sonoridade, como fazem os repentistas aqui no Brasil. Buk é aquele “relaxa”, aquele “pega leve” que a molecada repete em alto e bom som. As poesias de um velho duro e amargo pelos golpes da vida, mas carregadas com uma imensa sensibilidade que tem “um pássaro azul no peito” mostram que as emoções se escondem mesmo nos mais brutos e podem aflorar por vez ou outra.
Mesmo pessimista, Bukowski é por vezes um otimista em seu desprendimento com a vida, como no seu clássico poema Rolando os Dados (Roll the Dice), recitado por Bono vox do U2, um dos principais fãs do escritor, junto com ator e diretor Sean Penn.
 
Tudo sempre pode esperar, sejam os MBAs ou academias de ginástica, afinal de contas, a vida não é um jogo de performance, mas “algo a ser desperdiçado”. Os amores vêm e vão, talvez a alma gêmea do amor romântico nunca nos alcance porque “o amor fracassa” e não se preocupe em demasiado, afinal de contas, “ a vida é inútil”, você, eu e todos iremos morrer, então, para que sucumbir a tanta pressão do superego?